NÚCLEO DE CRIAÇÃO :: NEWSLETTER 1



PRIMEIRO CICLO :: 2009-2010

UMA VOLTA

Um primeiro ciclo. Uma apresentação. A inauguração do Núcleo foi organizada em torno de projetos pessoais de cada um dos integrantes, para que nós nos conhecêssemos. Vimos a construção de um curta de animação, o trabalho apaixonado de Frederico Carvalho Junqueira, que mostra como executou o argumento do filme, a roteirização, a modelagem dos personagens, o movimento, a composição do áudio, a interpretação de voz, e edição. Em seguida, Claudio Bichucher ensina a especialidade da produção musical e de áudio. Somos introduzidos à lógica das mesas de som, softwares de gravação e efeitos especiais, aos métodos de afinação e preparação da sonoplastia de espaços (até os estádios de futebol). Doda Ferrari, em nosso terceiro encontro, expõe o raciocínio de construção de uma campanha publicitária, discutindo um caso em especial, sua crítica, e sinalizando algumas possibilidades de análise cultural e humanística da campanha. Vanessa Tiemi Doi abre o ano de 2010 com um estudo da dúvida e da angústia no processo criativo, observando referências da psicanálise de Jacques Lacan. Fábio Garcia expõe a arquitetura de um negócio de marketing digital, seu trabalho de mais de um ano no estabelecimento dos contatos e contratos, na escolha das formas de divulgação de um empreendimento abrangente para as mídias digitais. No encontro seguinte, Martha Nascimento mostra a lógica de seu trabalho em estamparia, defendendo um processo criativo aberto a estímulos em qualquer campo cultural, questionando o senso de tendências ou da leitura de comportamentos. Concluímos o ciclo com a apresentação do projeto social Lar do Caminho, por Jordana Simonaggio. Responsável pelo entretenimento cultural de crianças entre seis e sete anos, conduzindo-os em passeios pela cidade e convocando novos colaboradores, Jordana nos faz pensar a ligação que existe entre o trabalho criativo e as ações sociais contemporâneas.


ALTERNÂNCIAS

Se cada ciclo de nosso Núcleo envolve a apresentação de um trabalho ou pesquisa por cada participante, como base, há também quatro atividades que escapam à freqüência lógica de nossas reuniões.

1. Uma visita cultural por trimestre, leva-nos a exposições, bibliotecas, ateliers, palestras. Começamos, neste ciclo, assistindo à performance do grupo Dr. Sketchy Anti Art School – em que artistas fazes poses para desenho. Com carvão e lápis, o grupo se reuniu por algumas horas para que os mais experientes nos ensinassem o desenho de modelos vivos.

2. Um filme. Nossa primeira sessão foi com o formidável documentário de Sydney Pollack, Esboços de Frank Gehry. O trabalho exuberante do canadense Gehry é exposto em meio a uma conversa franca sua com o amigo Pollack, em que discutem inseguranças, ímpetos, decisões de vida deste arquiteto considerado por muitos o mais marcante traço de nosso tempo, autor do prédio de artes do MIT, em Boston, do Museu Guggenheim de Bilbao, do Vitra Design Museum alemão. Vemos o dia-a-dia do escritório de Gehry, e descobrimos seu trabalho completamente suportado pela prototipagem em maquete (será tema de palestra no próximo ciclo)

Ver trailer do filme

3. Uma experimentação gastronômica. Nossa prometida degustação foi promovida a toda a experiência de um almoço no restaurante Kinoshita, pela delicadeza na recepção do chef Murakami e de sua equipe. Indicado sucessivamente, nos últimos anos, por diversos críticos e revistas, como uma das mais importantes propostas criativas na gastronomia do país (Murakami já foi considerado chef do ano pela Veja e pela Prazeres da Mesa, por exemplo), o Kinoshita é um restaurante que inova sobre a tradição da cozinha “kappo” japonesa – a comida de sensações, que respeita as estações do ano e a regionalidade. O chef nascido em Hokkaido e formado em restaurantes de Tóquio, Nova Iorque e Barcelona, serviu-nos pratos especiais e, ao final, contou-nos pessoalmente sua história e o sentimento que o move na criação culinária. Iniciamos uma conversa sobre análises da cultura japonesa, como a de Roland Barthes, que o chef aprecia, “O império dos signos”, com a perspectiva de seguirmos esta interlocução com Murakami no Núcleo ou em um próximo almoço no Kinoshita.

(ver um depoimento de Tsuyoshi Murakami)

4. Um estudo de psicanálise e criação. Neste ciclo, o tema foi Fantasia cria realidade, em palestra de Andréa Naccache. Nela, estudamos um pouco a mudança de valores sobre o conceito de fantasia ao longo do século XX. Se ela já foi muito vista como uma ruptura com a realidade, esta perspectiva ainda assombra pensamentos conservadores – a fantasia como vizinha da loucura, que seqüestra a pessoa da vida conseqüente e responsável. É um ponto de vista que fundou alguma tradição psiquiátrica e a crítica aos recursos de realidade virtual, até hoje – como, por exemplo, a condenação de relacionamentos estabelecidos em ambientes lúdicos como o Second Life.

Passamos pelo pensamento oposto, a defesa da fantasia, em obras como “A vida é sonho”, teatro de Calderón de la Barca, de 1635, e textos de Coleridge, no século XIX. Olhamos por um instante grandes viradas na concepção científica da realidade, como a revolução copernicana (que nos ensinou que a Terra gira em torno do Sol, e não o suposto inverso) e a visão da ciência como falseável, por Karl Popper. Vimos um pouco da construção da realidade moderna, com Descartes, Bacon e Wittgenstein. Examinamos o texto de Freud “A perda da realidade na neurose e na psicose”, de 1924, e indicamos por qual caminho a psicanálise freudiana nos permite perceber qualquer construção de realidade como imbuída de fantasia, porém com uma sinalização importante: faremos nossa realidade sobre as fantasias de medos e sintomas neuróticos, ou saberemos alçar nossos desejos ao mundo? Essa questão foi posta a partir de leituras sobre como a neurose obsessiva pode propor um mundo todo feito de muros e barreiras. Encerramos observando importantes trabalhos de transformação da realidade contemporânea através do design, pelo livro Massive Change, de Bruce Mau.


O COLETIVO É SUJEITO DO INDIVIDUAL

Talvez fosse uma surpresa encontrarmos um trabalho social no fechamento de um ciclo de projetos de criação. Apenas talvez. Constatamos, ao contrário, ouvindo Jordana Simonaggio, que se a última década despertou formas de criação sensorial – enfatizando o valor dos processos criativos e de seus frutos, na gastronomia, na moda, no design, na arquitetura, nas artes diversas que suportam um mercado de entretenimento e cultura em intenso crescimento – precisamente ao mesmo tempo, alguns projetos sociais passaram a despontar sem a tonalidade tradicional da caridade. Assumiram a forma de participação e experiência. Entre os jovens, o opção pelo trabalho criativo aparece da mesma maneira que a escolha do trabalho voluntário ou do empenho profissional em projetos sociais.

Em nossa última reunião do ciclo, dedicamo-nos por um momento a procurar fatores que aproximem a criação singular – esta com que trabalhamos no Núcleo – ao projeto social. A questão posta ao grupo foi: em quê os projetos sociais participativos atraem da mesma maneira que a criação? Eis as primeiras conclusões:

(i) Em ambos a pessoa se dispõe a intervir no mundo, moldar sua realidade. Fazer diferença para outros, singularmente. Entendemos que há singularidade no projeto social participativo porque a escolha da ação em que a pessoa se envolve costuma ser bastante pessoal. Jordana gosta de estar com as crianças, e discute especialmente a idade do grupo, por motivos que ela reconhece serem dela – não a constatação de que, eventualmente, aí o trabalho fosse mais necessário.

(ii) Percebemos que o trabalho com crianças proporciona a experiência da espontaneidade e do acaso que agradam tanto o trabalhador social quanto o criativo. A forma de curiosidade e os caminhos de entretenimento ou aprendizagem percorridos pela crianças possuem a mesma lógica do trabalho criativo. Analogamente, projetos sociais que envolvem esportes, difisão de arte e cultura ou lazer captam outros ou os mesmo aspectos do trabalho criativo.

(iii) Tanto o criador como o trabalhador social participativo talvez persigam uma experiência de limite e diferença no encontro com o outro. Em ambas as atividades, um empenho de alguma característica muito pessoal do trabalhador o coloca em xeque diante do desafio de atrair ou envolver o outro. O limite também é encontrado na escolha das matérias e dos materiais ao trabalho, que pedem soluções peculiares e surpreendentes – tanto a criação quanto o trabalho sociais está condicionado pelas limitações do material.

(iv) Aspecto em comum das duas atividades: sensualidade – a aplicação não apenas de uma produção intelectual, mas dos sentidos. Mesmo que o criador possua uma equipe que executa sua criação, ou o trabalhador social tenha colaboradores que colocam a mão na massa, a participação envolve sempre decisões sensíveis, que contam com a história de vida da pessoa, seus referenciais e sua herança estética e afetiva. Se um criador se envolve em um projeto sobre o corpo ou sobre a técnica industrial, se um trabalhador social vai ajudar crianças pessoalmente ou opina na composição de um website, jamais será pessoalmente indiferente.

(v) Encontramos nestas atividade, pela sensualidade envolvida, muito comumente, um despojamento da auto-imagem – a pessoa se coloca em situações em que ela não sabe como parecerá. Envolvida de “mãos na massa” em uma atividade às vezes por horas ou dias, há uma perda do cálculo da própria imagem. (Podemos pensar como outros trabalhos guardam, ao contrário, uma grande vaidade da imagem). Uma boa referência é pegar piolho das crianças. O trabalho criativo, na maquete, na pintura, no corte e costura, em uma construção em madeira ou cimento, na cozinha, mesmo na noite virada diante de um computador, também não são indulgentes com a imagem do criador. O criador e o trabalhador sociais se confundem com o trabalhador braçal, ou passam tempo nas condições mais simples, ou buscam o contato com quem não necessariamente admiram, com o diferente, com o que não gostam, colhendo dali às inversões de ponto de vista e a percepção das próprias limitações, que instigam e enriquecem sua experiência.

(vi) Tanto o trabalho criativo quando o social participativo requerem do envolvido um empenho imprevisível de tempo, uma abertura às condições da atividade, que se mostram espontaneamente. Muitas vezes (a menos que o limite de tempo faça parte da atividade) é preciso abandonar o cálculo milimétrico de aproveitamento do tempo, nessas atividades.

(vii) Enfim, vimos em ambos os trabalhos o sentido de herança cultural – a percepção dos envolvidos de que produzem com o que receberam em sua história de vida – e retribuição. Há um compartilhamento cultural sem compromisso, um senso de participação tal qual o de redatores da Wikipédia ou programadores do Linux. O criador usa as marcas que os outros lhe deixaram para deixar sua marca. O trabalhador social, mesmo que em outro sentido, também retransmite, de maneira elaborada e pessoal, o que recebeu da sociedade.

Por esses aspectos, tanto o trabalho criativo quanto o trabalho social participativo fazem lembrar palavras de Jacques Lacan sobre Freud: “o coletivo não é nada, senão sujeito do individual” (no texto “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”, do livro Escritos, de 1966).

Podemos pensar que o coletivo é composto de singularidades incalculáveis e que ele, como herança cultural, está na base de qualquer singularidade. Isto garante para o criador que seu trabalho, ainda que profundamente íntimo, seja marcado pelo outro e sempre toque o outro, desde que publicado. Todo trabalho criativo é trabalho social, e todo trabalho social participativo e sensualizado (que use os sentidos) é trabalho criativo. A condição para que ele funcione assim e tenha interesse coletivo é escapar minimamente à simples cópia, à repetição de fórmulas. Se possível, mais que minimamente...

Participantes presentes na reunião em que realizamos essa análise e colhemos as conclusões: Jordana Simonaggio, Frederico Carvalho Junqueira, Doda Ferrari, Fábio Garcia, Vanessa Tiemi Doi.


O PRÓXIMO CICLO

Abrimos inscrições para o próximo ciclo do Núcleo. Nesse trimestre, os trabalhos dos participantes serão apresentações de alguma criação cultural que os encante (não há restrição de campo ou tema) mostrando elementos da biografia do criador e de seu processo criativo. Queremos conhecer paixões dos participantes, em análise mais aprofundada. A palestra de estudo psicanalítico, por Andréa Naccache, terá por tema A paixÃo do material imponderável - Sobre a arquitetura de Frank Gehry, o design de Fernando e Humberto Campana, expressões da moda e da cozinha em que a manipulação do material permite um processo criativo sem visão do todo. A visita, a experimentação gastronômica e o filme estão em fase de definição, entre alternativas tentadoras.


Direção :: Andréa Naccache

Direção de Fluxo e Engajamento :: Vanessa Tiemi Doi